quinta-feira, 29 de outubro de 2020

Desespero da modernidade

 Como quem anda sozinho pela vida,
desespero-me na era das reproduções,
vim de encontro a esse momento 
sabendo o que me esperava,
eu tive certa clarividência,
eu vi acontecer.

Pelas ruas, hoje, homens indistintos,
vazios de sentido, 
reflexos no espelho,
sem som, sem nada.

E nas casas de gin,
vê-se o movimento dos corpos, 
das coisas, dos copos... 

Mas procura-se a humanidade,
suplico significado,
e claro, eu não desisto.

As carapaças não mentem,
os estereótipos são os vencedores 
na era das reproduções.

Eles não têm dúvidas; apenas certezas,
estão sempre à procura de felicidade,
mesmo sem entendê-la.

E nas praias, elas também se repetem,
nos shoppings e galerias,
elas se repetem demais,
fazem tudo que as outras das telas fazem,
querem tudo que as outras das telas querem.

Pai, pai nosso que estais nos céu,
(nada tão desesperado e tacanho
como apelar aos céus, mas)
salve-nos da modernidade,
dessa estranha, estranhíssima modernidade...

Porque eles precisam!
E elas precisam!
Ah, a gente precisa...

Para redescobrir a humanidade da tristeza,
sentir de novo que ser feliz 
é só um ponto e pronto.

Compreender a vida sem fugir 
do que é ser humano,
se aceitar, e ter ideais 
firmes para o mundo.

Conseguir pensar num novo hábito 
que nos salve dessa insanidade,
e que por acidente ou boa intenção
salve os homens da modernidade.

Imagem do dia!


O jornal

 Li no jornal que amanhã não vai dar sol,
que bom... porque é segunda-feira
e eu não nasci com esse dom de ter que viver pra crer.

E não tem mistério, não tem crise existencial,
é que eu me viro puro no escuro,
trancado com meu mantra de carnaval...

Eu me protejo, me sinto mais firme
no infinito de um céu nublado,
repetindo amores temporais, odiando feriados.

Eu me saio muito bem
sendo inteiramente seu,
me encontro, me resumo sem remorso por você.

Li no jornal que o seu signo não bate com o meu
e escrevi sem querer o teu nome nas palavras cruzadas,
por nada, eu devo estar louco...

Li no jornal que o Hamilton venceu em Mônaco
e que o âmago de toda relação está no sexo vulgar.
Eu li no jornal qualquer coisa sobre como a vida é dura
e que essa semana vai ter show do holograma do Cazuza...

Li que o mar está cheio de tubarões
e que no futebol ultimamente andam faltando vilões,
que o Egito está em guerra,
que não existe paz na terra e nem nos corações.

Todo dia o mundo é devorado nos jornais,
e isso me dá um grande alívio de ainda viver.
Embora a vida lá fora me lembre da saudade imensa
que eu sinto de você.

E mesmo com essa dor,
eu, covarde,
sumi, não pude sair pra te ver...

Porquê no jornal dizia que ia chover,
e não há guarda-chuva contra você.

Imagem do dia!

 

Merecimento

 Amarrado às filosofias tristes
sigo fazendo repetidos discursos,
insistentes discursos...

Romantizo a tristeza
e a infelicidade dos meus poetas mortos,
sem saber da verdade,
da vida provinciana 
e da alegria de suas vidas.

Ninguém pode ser só triste,
nem eu, que mereço muito.

Ninguém deve ser só triste,
nem eu, que preciso muito.

Escorado nos poemas de Schmidt,
debruçado na elegia desesperada,
romantizo essa tristeza toda
buscando algum significado...

As filosofias vãs não me permitem
escolher uma direção, 
não tenho um padrinho literato,
não tenho um amor insano e triste,
não choro quando rezo os mortos,
não vivo só pra ser feliz.

Mas ninguém pode ser só triste,
entende?

Ninguém deve ser só triste como eu, 
que mereço muito.