terça-feira, 31 de março de 2015

Imagem do dia!


Só o Rio

Em tempos difíceis apelo pra ti,
apelo pros dias claros,
pros clichês intermináveis.

Apelo pro cristo visto do parque lage,
recorro aos azuis do mar calmo no arpoador,
aos passantes dançando em volta das estátuas da cidade,
recorro a essa aura de descontrole e amor de irmão.

Eu nessas horas invoco
o poder das pedrinhas portuguesas,
uma dessas belezas bestas
que depois de velho não vou enxergar.

Me debruço num pedalar incansável,
deslizando sem medo pelo caos,
passando por entre as veias,
pelas entranhas dessa povoação,
nas horas tristes e felizes,
nos pontos de fervura,
de ebulição...

Recusando esse assolamento das almas,
essa tendência do século,
esse desamor, essa distância de tudo,
esse ver e rever constante
que hoje é sem abrir os olhos,
sem deixar brilhar.

Em tempos difíceis apelo pra ti,
apelo pras quedas d'agua,
pros cantos que lavam a alma.

Apelo pro céu estrelado das noites daqui,
essas noites frustradas que queriam ser dia.

Ah, eu apelo pros domingos de sol olhando pras tijucas,
apelo pra joatinga, pra marambaia,
apelo pras delícias, pros loucos, pras meninas.

É, sempre dá certo,
em tempos difíceis no final das contas
eu sempre me viro, parece besteira...

Mas é que só Rio me salva do Rio.

segunda-feira, 23 de março de 2015

A colheita

Há sim dentro de mim essa angústia,
essa inevitável presença,
essa coisa de que a morte
pode aparecer pra assuntar a qualquer momento,
repentinamente vir fazer sua colheita.

Às vezes me parece tão claro
que não pertencemos a carne,
que estamos em trânsito por aqui e somos só caos,
somente matéria em desintegração.

Percebi que mora mesmo em mim esse dilema,
e que reside enquanto sofrimento
e também deleite...
Como fosse um pesadelo incompreendido
daqueles que se repete
e você descobre cada vez mais elementos;
é qualquer coisa como uma bipolaridade dos sentimentos.

Mora em mim o cântico mórbido
do conhecimento e da inevitabilidade da morte,
de todo sofrimento terrestre,
do terror implacável da dor física,
esse espectro da mortalidade,
a doença, o câncer, a leucemia.

E ao mesmo tempo existe também essa aurora colorida,
o sangue novo, o viço da juventude,
a força jupiteriana das articulações,
a coragem, a invencibilidade que nos é tão real
e também tão mentirosa, enganadora.

E essa brisa, esse sopro de altivez,
todo o autoconhecimento adquirido,
a inteligência, a negação repentina do que é divino,
a desesperança e o amor cada vez mais distante,
todas essas descobertas da existência
são somente uma espécie de amadurecimento,
uma abrupta revelação de que tudo,
até mesmo o fim,
é só desilusão.

E eu não sei de onde vem,
nem do que se trata,
se do córtex,
do espírito,
da energia...

Sei que reside em mim toda essa loucura,
toda essa dúvida,
essa admiração pelo adversário
intransponível que é a morte,
e por esse agente modificador extraordinário
e radioso que é a vida.

terça-feira, 10 de março de 2015

O velho e seu charuto

Foi numa segunda-feira ou talvez numa terça, a verdade é que eu já não sei bem, mas era bem cedo, entre quatro e cinco da manhã. Se era Nascimento Silva ou Redentor também não lembro, mas lembro bem daquele velho ostentando um suspensório grená, uma bermuda desgastada de linho, camisa branca lisa e uma social listrada em branco e rosa bem aberta, a barba grisalha levemente por fazer; eu só não me lembro mesmo dos sapatos. Mas aquela cena me chamou muito a atenção, farejei um certo desconsolo na feição daquele senhor, no jeito como ele estava ali aquela hora da manhã, sentado de maneira pouco confortável, recostado numa jardineira dessas de rua que tinha uma grande árvore. Era diferente, era algo que tinha jeito de rotina, mas que também tinha alguma coisa que não se encaixava, talvez fosse o charuto com aquela fumaça densa, ou mesmo a tristeza da solidão daquele personagem parado ali, não sei; talvez fosse a hora, a postura. Tinha cara de poucos amigos, cara de quem estava pouco interessado em tudo a sua volta. Tinha uma melancolia toda especial naquela cena, uma coisa que a gente vê, sente, depois tenta traduzir mas não consegue. Imaginei que ele devia estar ali porque a mulher não o deixa fumar o charuto dentro de casa, talvez fosse uma proibição dos filhos, talvez ele tivesse um problema respiratório, talvez fosse câncer. Mas ele não tinha cara de doente. Tinha mesmo uma consternação qualquer, uma amargura. Talvez tivesse enterrado um filho recentemente, talvez fosse um momento de reflexão, talvez fosse vergonha de chorar em casa uma saudade qualquer. Mas tinha jeito de ser grande homem. E talvez aquele fosse só um dia comum em que ele precisou dar uma volta pra espairecer, dando suas baforadas pra pensar na vida. Lembrar de velhas histórias, velhos amigos, recordar almoços de família, a mesa cheia, o cheiro da carne daquela churrascaria em Petrópolis, o nome do maître... João, Mário, Chico? Não sabe, não lembra. Como estaria ele, seja lá qual for o nome... será que ainda trabalha lá? E o cheiro da carne, o sabor, o filé à Oswaldo Aranha, será que continua igual? Talvez nem fosse tudo tão bom quanto ele lembra, o barato mesmo era a mesa cheia, a criançada dando trabalho, filhos, netos, sobrinhos, agregados. Por onde anda todo mundo, por que é mesmo que tudo muda? É, talvez fosse de alguma coisa assim saudosa e corriqueira que saia aquele ar de desesperança, talvez fossem só lonjuras, distâncias. Há muita gente que sofre disso, muita gente que morre disso. Mas tem outros que não... pra alguns é só um pequeno vício, coisa de alguns minutos, dessas que vem com a insônia e vai embora com um charuto.

Narciso completo

Toda vez que te encontro,
por querer ou por engano,
eu acordo de um sono de anos.

Eu me sinto tão certo,
narciso completo,
um novo alguém que é todo feito de você,
do amor, da dor, dos sonhos que tivemos,
e que ainda temos...

De todos os seus quereres,
da brisa dos nossos lugares,
da maresia da tua janela.

E como qualquer hippie,
como um tropicalista,
por um momento eu vejo beleza em tudo,
eu vejo em você outros mundos,
tantas cores, tantos tons,
eu alucino nos teus passos uma porção de notas salteadas,
teu caminhar é melodia pros meus ouvidos,
um banquete pros meus olhos...

E nesses dias quentes de dezembro,
nas chuvas de verão,
dessas que pegam a gente pelo braço de surpresa,
dessas que caindo bem morna,
molha e a gente nem se importa...

É quando eu quero mais de você,
da tua presença,
dos teus olhinhos verde-azuis,
dos teus descontroles,
tuas histórias, teus amores...

É quando eu quero ainda mais de você,
da tua parte doce e amorosa,
dos teus shows, teus escândalos,
do ciúme, do sorriso, do perfume...

É, é bem quando a chuva vem,
é quase combinado,
mas é só quando é chuva de verão,
dessas que caem bem mornas do céu,
que quando molha a gente não se esconde,
não abre o guarda-chuva,
não se importa...

Daquelas que são como o amor.