segunda-feira, 30 de novembro de 2020

Profanador

De certo risonho 
profanador de corações,
desavergonhado colecionador 
de deslizes, distrações.

Caminhante leve de passos sortidos,
seccionando,
marcando com os olhos todos os desvios.

Destemido, pra sempre menino,
descomunalmente provido 
de talento, dom divino...

Inimaginável, 
despretensioso protagonista de lugar nenhum,
muy afortunado, gaiato, atirado, 
sorriso rasgado, um coringa.

Narciso ferido no eco 
de suas repetidas conjecturações,
incompreendido,
perdido em seu próprio ser.

Profanador de corações,
só por prazer, facilidades,
pelas verdades que só um Deus entenderia.

Profanador de corações,
descrente do amor
só pela dor que traz consigo.

Vivendo pras inutilezas, sutilezas, 
as delícias do caminho...
seguindo inadvertidamente levado 
pelos improvisos dessa vida.

Profanador de corações,
só por prazer, facilidades,
pelas verdades que só um Deus entenderia.

Profanador de corações,
descrente do amor
só pela dor que traz consigo.

Imagem do dia!


 

Lugar sagrado

Muito antes dos brancos loucos,
dos portugas e franceses,
muito antes dos índios todos,
dos tupinambás e tamoios...

Isso tudo já estava no lugar,
as pedras e as vistas delirantes,
sem nomes e endereços,
sem poemas e definições,
salamandra cruel e intacta,
sem as guerras e os cifrões.

Lugar sagrado e definitivo
muito antes dos cristãos,
antes de existirem crenças,
e antes de toda religião.

Sem ninguém pra ver,
sem ninguém pra tocar,
sem ninguém pra crer,
sem ninguém pra pintar...

E os contornos todos
ao gosto original,
o céu desaforado,
se exibindo para o mar...

Uma guanabara inteira 
de histórias pra contar,
dos cantos do Rio,
e da insensatez,
de todas as coisas que ninguém ainda fez.

Muito antes dos brancos loucos,
dos franceses e portugas,
muito antes dos índios todos,
dos tupinambás e tamoios...

Muito antes dos fenícios da gávea,
das naves avistadas,
e dos símbolos sagrados de qualquer lugar.

Isso aqui já era santuário
pra um Deus que alguém precisava inventar.

Imagem do dia!


 

O homem só

Não há nada com charme no mundo moderno 
que possa sobrepor o charme de um homem sozinho,
da solidão do ser humano, 
da complexidade e da tristeza das escolhas
que levam uma vida a espalhar-se sozinha 
pelos anos de existência que lhe restam.

Não há nada que me convença 
que um homem só não pode ser feliz,
nem os olhos vazios, nem o sorriso roto 
de quem não sorri pra ninguém,
de quem esqueceu como é, 
de quem só lembra da felicidade distante.

Não, não há nada nessa vida moderna que possa me fazer mudar de idéia,
o sofrimento do homem só, é como algo que me preenche,
semeia os campos plenos e vazios de minha alma 
com os arbustos que tem as mais doces amoras,
e não há nada que possa mudar isso, não.

O homem só, tem a paciência dos anjos, 
paga suas penitências em vida e nem sente,
o homem só e sua barba por fazer trazem pra perto
a tristeza e a compreensão que só quem sofre por amor também possui,
só quem sofre repetidamente por amor também possui.

Ah, o homem, entidade desesperada por amor e compreensão,
e o sofrimento do homem, do que se trata essa obstinação para com os fins? 
Se são os meios que nos moldam, 
se são os outros que nos marcam, e nós aos outros, e o mundo a todos.

Ah, o homem só, e sua barba grisalha, sua vida em eterno ponto facultativo,
tudo provisório, tudo em flutuante condição,
sempre leve, suspenso pelas horas do dia e da noite, ele, o homem só,
ele que poderia ser em sua juventude de alma 
o personagem de qualquer romance,
ele que tendo sua nobreza e paz de espírito 
poderia ser a égide incansável de qualquer mulher,
ele, o homem só, essa criatura tão contraditória e encantadora.

Que enquanto homem só, apenas carrega sua tristeza pelos cantos,
por entre os homens felizes e as mulheres que poderiam ser felizes consigo,
que dribla a cidade movediça e seus passantes,
ele, homem só, que sendo ele homem feliz, 
seria o mais feliz dos homens.

Que não sendo homem só, que sendo apenas homem, 
como os outros homens e suas famílias,
seria o maior dos homens, seria enorme seu coração,
e não esse emaranhado tão pequeno,
esse monte de nós tão justos que nunca se desatariam.

E não, ainda acho que não há nada na vida 
que explique a beleza do homem sozinho,
a beleza do homem sozinho se comparado aos outros homens vivos,
ele que é esse ser aprisionado em procrastinação domingueira infinita,
que é essa existência que reside numa desmesura de ócio,
de tédio que semeia, rega e colhe,
semeia, rega, 
e encolhe o coração.