terça-feira, 29 de dezembro de 2020

Imagem do dia!


Camaleão

Posso falar das coisas mais tristes esta noite,
me apegar a uma penúria interminável,
me afogar em amargura e desespero,
posso escrever alegremente sobre os dias cinzentos nessa cidade de sol,
e transformar em bolero, em tango, em fado,
qualquer samba animado que for colocado na vitrola.

Eu posso dizer que os dias estão curtos,
que as noites estão longas,
que as praias estão sujas e lotadas,
que as pessoas estão perdidas,
que são todas existências degeneradas.

Eu posso lavrar um decreto à tristeza,
posso consagrar mil suicídios,
entregar facas amoladas as crianças,
tirar as grades das sacadas,
enviar cianureto pelos correios...

Ah, eu posso gritar aos sete ventos todas as mazelas,
sofrer, me angustiar, me desfazer em querelas terríveis,
não entender nada do mundo,
não enxergar um palmo à minha frente,
eu posso ser como eu quiser...

Porque mesmo entre desastres,
mesmo escrevendo e vivendo muito do mal do mundo,
eu posso amanhecer e ser feliz,
eu posso me esquecer de tudo e caminhar pela cidade,
sorrir para os outros, dar bom dia aos mendigos,
andar descalço, estreitar meus laços com as pedras portuguesas.

Porque seguindo assim,
sendo esse camaleão de mim mesmo,
é que eu posso falar, posso dizer,
posso escrever, lavrar,
gritar sentenças cheias de certezas aos sete ventos,
sendo assim eu posso, posso ser como eu quiser.

Tardes e tédio

Tardes inteiras de tédio
dissecam a vida,
sob os nossos olhos o tempo,
o sal das lágrimas ,
e não há muito mais que isso...

Só há muito tempo,
tempo passado e ainda por vir,
temos todas as nossas escolhas aqui,
os mandos e desmandos do destino...

Somos água, somos pedra,
gato e rato,
vira-latas...

Somos dois passados distantes,
uma história irreal,
boa história de contar 
pra ninar essa tristeza,
e a saudade se mostrar.

Somos dois e mais do que nunca
estamos longe, 
estamos sós,
porque quando somos dois,
é quando estamos sem nós.

Somos prédio e amendoeira,
o corneteiro e a esquina,
o leblon e ipanema,
a cidade e a chacina.

Somos dois e mais do que nunca,
estamos longe,
estamos sós,
e quando somos dois,
é justamente quando estamos sem nós.

E somos chuva e mata seca,
o milagre e a padroeira,
o elevado e a ressaca,
joatinga e quarta-feira.

Tardes inteiras são o tédio,
sob os nossos olhos o tempo,
o sal, as lágrimas,
as luzes das avenidas à noite...

Já faz muito tempo,
tempo passado e só.

Imagem do dia!

João da Baiana e Pixinguinha no Centro do Rio de Janeiro anos 60


Sânscrito

Se fosse sânscrito sua paixão,
debruçaria-me dias e dias,
pra aprender, poder falar...
como eu te amo, coisa linda.

Saio de casa sem querer me lembrar,
do tempo todo que eu não vou estar,
e dessa sanha incontrolável 
que eu sinto de não poder te encontrar.

Se eu fosse um Deus iria te inventar,
só pra te ver viver no mundo e amar,
com os olhos tristes de quem sabe
que a vida é muito mais.

Alma velha irretocável
me ensina a vida inteira

Alma velha e delicada
traduz minhas tristezas

Direto dos olhos
como fosse luz,
direto dos olhos
tiro esses versos...

Alma velha irretocável
me ensina a vida inteira

Alma velha e delicada
traduz minhas tristezas

E se eu fosse um Deus, 
ia te inventar,
se eu fosse um Deus, 
ia te guardar, pra você não ver...

Que a vida é só...
É só o que aí está.