Era manhã, uma manhã como outras tantas que ele havia presenciado,
levantou-se da cama, fitou os jardins do palácio, viu as lâmpadas se apagando,
era mesmo uma manhã como outra qualquer; ou pelo menos deveria ser.
O príncipe sentia-se mal, algo o consumia, faltava-lhe qualquer coisa que não podia nomear,
notava o quanto parecia envelhecido no espelho,
o quanto não se impressionava mais com aquelas colunas de mármore
e os suntuosos entalhes nas paredes, as pinturas de grandes mestres no teto,
notou o quanto tudo lhe parecia incrível e inaceitavelmente provinciano,
como aquilo tudo que sempre possuiu, que sempre o pertenceu e sempre o satisfez,
de repente era algo tão desprovido de importância, de beleza.
Não dando muita atenção a seus devaneios, tentando esquecer-se do que sentia de estranho naquela manhã, seguiu o dia como deveria, como fazia todos os dias,
ignorando os sintomas desse suspiro da alma que lhe parecia tão esquizofrênico,
escanhoou-se de frente ao enorme espelho do banheiro,
escolheu seu traje real favorito e desceu as grandes escadas de mármore até a mesa do café,
naquela manhã estaria sozinho, seu pai havia viajado,
sua mãe permanecia enterrada em uma de suas intermináveis depressões,
e seus irmãos, ele nem sabia por onde andavam.
Assim, sozinho à mesa, começou seu pequeno ritual em silêncio,
serviu-se de frutas, naquele dia quis as vermelhas; logo depois os pães, com geléia, com mel, manteiga, e depois algum doce, gostava muito de torta de pêssego e sorvete de creme.
Mas pra deixar aquela manhã ainda mais incomum, parou logo no primeiro estágio de seu ritual,
notou algo diferente já no primeiro morango, mas insistiu, tentou uma framboesa,
e como último recurso maçã e mel... era aterrador o que ele estava percebendo ali,
definitivamente, tudo, tudo naquele dia estava muito errado.
Da ponta da mesa, já com algum desespero nas cordas vocais,
gritou para que trouxessem a torta de pêssego, prontamente atendido e servido,
deu a primeira colherada com o medo já instalado nos olhos, não esboçou nenhuma reação,
levantou-se da mesa e subiu as escadas para o seu quarto enquanto um turbilhão de pensamentos o consumia, o que será que estava acontecendo, havia sido envenenado? Podia ser. Mas ele não sentia nada, e esse parecia ser o problema, ele não podia mais sentir. Inconformado, confuso, perdido na angústia, na novidade triste que aquele dia havia trazido para a vida dele, mandou que buscassem sua amada, era uma menina ainda muito nova, ele tinha verdadeira paixão por ela, era uma relação estranha, estava prometida a ele desde que nasceu, e ele a tratava com extrema devoção, zelava tanto, sentia compaixão pela fragilidade que enxergava nela, queria tê-la das formas mais puras, tê-la enquanto mulher, filha, rainha num futuro sem os seus pais, mãe de seus filhos, matriarca incontestável do seu reinado.
Ele estava em seu quarto e foi avisado que sua menina havia chegado,
foi até a o salão para encontra-la... e então deu-se ali um momento terminal, lá estava ela,
munida de seus olhos frágeis, de seus cachos loiros, ungida pela pureza e lisura daquela pele branca, estava lá, ainda de pé no meio do enorme salão de mármore do palácio, com um lindo vestido amarelo bem claro, despejando sua beleza, sua incrível e inegável aptidão para a nobreza... que espírito aquele! Era mesmo uma existência transbordante, um alento, uma resposta direta de algum ser superior as incríveis tristezas do mundo.
Ela estava mesmo lá, parada feito um anjo descido dos céus,
e ele a viu... viu, mas não viu.
Parecia ser só uma menina, e era nova demais, nem parecia à vontade naquele vestido amarelo exagerado, não parecia à vontade naquele salão, não parecia à vontade naquele corpo,
era só uma menina, e o que trazia nos olhos podia até ser medo, ele não sabia,
não entendia mais nada. Onde estava o resto? Havia resto? Havia sim, ele sabia disso! Mas faltava tudo ali, como reagir? Ele não disse uma palavra, saiu da sala do jeito que entrou, calado, com os olhos saltados, arrastando a alma pelas escadas subiu para o quarto, quis chorar e não conseguiu, estava seco, estava morto, ele não sabia. O príncipe havia perdido o brilho dos olhos,
perdeu num sonho, num sonho que não se lembrava; esqueceu de guardar antes de acordar e perdeu.
O príncipe havia morrido, e estava tão morto que se matou, debruçou-se na sacada de seu quarto,
tentou contemplar o azul do céu, não conseguiu; tentou enxergar a beleza dos jardins, não conseguiu;
parou pra observar o voo dos pássaros, das andorinhas, da coruja das torres e nada viu de importante;
nada que enchesse o copo vazio do seu coração, nada que trouxesse cor aos seus olhos opacos.
O príncipe caiu numa armadilha dos sonhos, havia sido roubado, seu bem imaterial mais valioso havia sido subtraído, que fim para um nobre, que dia para o reino... debruçado na sacada, tirou seu punhal da cintura e fez seu coração absorvê-lo,
sentiu o gosto do sangue na boca e concedeu sua última dança ao vento, permitiu-se um último capricho, rendeu-se ao voo cego dos inocentes, dos covardes, dos perdidos, jogou-se do alto de sua falta de esperança, deu fim a agonia imensa que sentiu por tão poucas horas, rendeu-se ao que nem podia nomear, estava vencido por um inimigo invisível, estava morto,
morto muito antes de se matar.
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