sábado, 28 de novembro de 2015

Camaleão

Posso falar das coisas mais tristes esta noite,
me apegar a uma penúria interminável,
me afogar em amargura e desespero,
posso escrever alegremente sobre os dias cinzentos nessa cidade do sol,
e transformar em bolero, em tango, em fado,
qualquer samba animado que for colocado na vitrola.

Eu posso dizer que os dias estão curtos,
que as noites estão longas,
que as praias estão sujas e lotadas,
que as pessoas estão perdidas,
que são todas existências degeneradas.

Eu posso lavrar um decreto a tristeza,
posso consagrar mil suicídios,
entregar facas amoladas as crianças,
tirar grades das sacadas,
enviar cianureto pelos correios...

Ah, eu posso gritar aos sete ventos todas as mazelas,
sofrer, me angustiar, me desfazer em querelas,
não entender nada do mundo,
não enxergar um palmo a minha frente,
eu posso ser como quiser...

Porque mesmo entre desastres,
mesmo escrevendo e vivendo muito do mal do mundo,
eu posso amanhecer e ser feliz,
eu posso me esquecer de tudo e caminhar pela cidade,
sorrir para os outros, dar bom dia aos mendigos,
andar descalço, estreitar os laços com as pedras portuguesas.

Porque seguindo assim,
sendo esse camaleão de mim mesmo,
é que eu posso falar, posso dizer,
posso escrever, lavrar,
gritar sentenças cheias de certezas aos sete ventos,
sendo assim eu posso, posso ser como eu quiser.

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