domingo, 17 de agosto de 2014

Os livros

Comprei um livro que se despedaça,
ele vai deixando rastros por onde abro,
às vezes deixa cair frases inteiras,
outras descarta só alguns advérbios de modo,
troca nas páginas mesóclises,
confunde toda numeração dos capítulos,
do fim vai ao começo,
do começo vê-se o fim...

O livro se despedaça como quem sangra,
mas quem sangra por sangria,
sangra pra curar a febre de conhecimento.

O livro sangra e suja tudo de dúvidas,
mostra outros mil caminhos,
alternativas ao destino fatídico
de ser enfim plano e silencioso,
de ser breve como um epitáfio
num canto úmido e com cheiro de mofo.

Comprei um livro que se despedaça,
mal nenhum me faz,
coisa alguma me nega...

O livro é fiel companheiro,
já travou sabe-se lá quantas guerras,
veterano, sábio e calado como um monge,
sagaz e misterioso feito Gatsby.

O livro é alma em construção,
corta e devora corações,
fermenta os sentimentos,
e aniquila aquela fria sensação
de que não há mais jeito pros males da vida.

Até que certa vez o livro desapareceu,
tomei-me de um sentimento terrível,
desespero, medo, achei que tudo estava perdido,
pensei que havia se despedaçado de vez.

Mas aí os meses foram passando
e eu percebi que tinha o livro em mim,
os anos foram passando e eu ainda o tinha...

Até que um dia
quando não lembrava mais do livro,
surpreendentemente
o encontrei em minha mesa,
junto a outros livros
que pensei que haviam se despedaçado de vez,
todos desaparecidos...

Abri um a um, investiguei com sede de Sherlock,
me peguei incrédulo com aquela situação,
não pensei que veria algo assim na vida,
mas os livros, os livros eram outros,
completamente diferentes,
em sua essência talvez fossem os mesmos,
afinal reconheci todos sem muito esforço,
mas eram outros, estavam outros, pareciam outros...

Me sentia de frente a um grande mistério,
parecia um problema, a prova de um crime,
não me descia essa história...

Eu transitava nas mesóclises que há muito sabia que lá estavam,
implicava com os mesmos advérbios de modo,
notava as gafes da tradução,
tantas semelhanças, e eu via e revia incansável todas elas,
como um filme da sessão da tarde
daqueles que a gente decora algumas partes...

Capa, contracapa, prefácio,
tudo tão perfeito, intocado,
não pareciam os livros que haviam despedaçado.

Então, como fosse milagre,
por estalo, insistência, por lapso,
por qualquer coisa que acorda a gente de repente,
no susto, eu percebi!

Os livros eram outros sim,
eles eram outros
porque eu era outro.

E se eu era outro,
devia ser por causa dos livros,
desses e dos outros
que eu havia perdido recentemente também.

Assim eu aprendi a entender os livros
simplesmente porque os livros estão sempre vivos,
eles se despedaçam
e se reconstroem em nós.

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