sábado, 16 de janeiro de 2016

Homem lamentador

Terça comum; dia quente, noite de chuva, verão,
o asfalto molhado reflete as luzes dos postes,
todo absurdo da cidade parece que descansa pro amanhecer,
eu não devia, eu não tenho motivos simples pro que vou dizer,
mas fui tomado de novo por um sentimento misantropo incontrolável,
de repente me bateu aqui no peito uma razão, um fardo, um peso indelegável,
estou sentindo que morro mesmo a cada dia,
desmonto palmo a palmo como na elegia de Drummond.

Hoje sinto esse desgosto que já não sentia há tempos,
do mundo não tenho alegrias pra contar,
não quero lembrar, não quero pensar em nada feliz,
hoje por mim, que me perdoem os sensíveis demais,
mas o Rio Doce pode nunca mais desaguar,
Paris pode explodir, europas podem afundar,
deuses podem descer de seus pedestais e não me curvarei,
expiarei a fúria desembestada de seus egos intermináveis
e os olharei com os olhos fundos que me pertencem,
esses mesmos que já não sentem nada...

Viverei o resto de meus dias
de sorriso falso estampado no rosto,
cego e lamentador, solitário,
um homem e seu imenso desgosto.

Viverei tranquilo mesmo sabendo
do teor de todos os meus vaticínios,
sei que essa frieza incorrigível
me deu o poder de abstraí-los.

Hoje não sinto nada, e se bem me lembro ontem também,
do mundo eu nunca quis saber,
sempre enxerguei tudo meio errado, torto,
vai entender...

Hoje por mim pode haver novo big bang, não temo,
permaneço insistente átomo,
lamentando toda nova existência.

Rastejando onde couber essa tristeza,
onde puder estacionar o meu desfecho ressentido,
onde houver sol encoberto pelas nuvens e tragédias inevitáveis,
lá estará essa minha perversa face,
esse eu lírico implacável, sanguinário, inumano,
onde houverem guerras,
assassinatos,
mortes por ciúmes,
o choro das mulheres e crianças;
onde houver devastação,
onde houverem almas cruéis e impiedosas,
onde a dor e o sangue correrem como a água dos rios,
e a fé brotar como nascente,
quando eles precisarem de um outro Deus onipotente,
estarei lá, eu; solitário,
de sorriso debochado estampado no rosto,
um homem lamentador e seu profundo desgosto.

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