O dia não tem esse véu de mentiras
da noite que eu tanto admiro,
não tem essa saciedade pelo terror,
não brinda o oportunismo com um sorriso na cara,
nunca atravessa a rua
sem olhar pros dois lados.
A noite passeia nas travessas escuras
vestida de preto, com sua bengala de marfim
tateando o chão como se cega fosse,
como se andasse de olhos fechados
pra não enxergar o amor.
O dia é claro e às vezes triste,
bem como em nós humanos
ele possui aquela distância dolorosa
entre a intenção e o gesto.
A noite não, ela é terrivelmente autêntica,
forte, impiedosa,
e vem trazendo o monstro da desolação na coleira,
insaciável, caótico, bruto e desordeiro.
O dia quase nunca perde o controle,
galã, bom moço,
é o genro que todas as sogras queriam,
o protagonista dos romances mais bem terminados.
A noite não, a noite é só dela,
enganadora, prolixa, sintomática,
metralha suas vontades,
suas palavras envenenadas,
só chora o próprio choro,
só ri o próprio riso,
ela nunca soube pra que serviam todas essas pessoas
se não pra pisar em cima
ou só pra esquecer que estavam lá.
O dia é leve,
é o soul do Tim,
é Radamés e Tom Jobim,
gol de falta do Zico,
algum chutaço do Marcelinho,
é leve, leve mesmo,
feito um painel de Portinari,
um azulejo português,
mar de verão verde-azulado.
A noite é mais sinistra,
é a poesia jorrando da fonte invisível de Schmidt,
é mais Ernesto Nazareth que Pixinguinha,
gol de falta do Petkovic,
a última pernada do Schürrle naquele mineiraço,
é, ela é mais desleal,
é desalmada como Tibbets sobrevoando Hiroshima,
megalomaníaca como Heródes, como Nero, como Hitler,
e inconsequente como Júlio Cesar,
como Diocleciano e Omar destruindo Alexandria.
Ah, como eu prefiro a noite...
tão singela comungando de toda essa crueldade,
tão maléfica e tão acolhedora no seu silêncio, na sua inocência,
tão afeita a rapinagem
e ao mesmo tempo tão contemplativa e despreocupada...
Ah, que Deus nos afaste dessa noite dos homens,
e nos permita vivê-la enquanto pureza,
enquanto ausência de luz e tão somente isso.
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