domingo, 13 de setembro de 2015

Sereníssima

Eu ainda me assusto quando amanhecem os dias,
quando o sol insiste em revelar a escuridão que a noite é,
e me assusto talvez por falta de luz própria,
me bate um certo desespero quando vejo o céu azul,
não quando é aquele azul habitual,
mas quando é aquele azul infinito e perturbador
que pertence ao verão e a alguns poucos dias do outono.

Não tenho luz pra isso,
me encontro muito mais facilmente na aura de desespero das noites,
não sei exatamente o motivo,
mas deve ser pelo ar fingido de tranquilidade,
pelo silêncio,
o abrandamento de toda aquela fúria de viver que trazem os dias.

Não suporto, não entendo,
eu não tenho esse cacoete,
não deixei crescer dentro de mim,
vivo como um marinheiro embarcado,
gosto de me imaginar um Gene Kelly incompreendido,
passo dias descontinuado e as noites em terra firme.

Não sou do sol, tenho até certa simpatia,
mas não pertenço, não devolvo o amor que ele me dá,
há certa fascinação, sim, certa deferência,
mais até pelos deuses pagãos do que pela função do astro de fato,
e há certo medo também, alguma covardia em mim,
um espanto qualquer, junto de algo como; um magnetismo,
uma coisa que me atrai mas que também me desprende sem nenhum pesar,
sem nenhum sofrimento.

Já as noites tem de mim a versão mais completa,
o sorriso mais sincero,
os olhos mais brilhantes,
porque depois que o sol se põe; devo dizer que sou menos eu,
mas que sou um eu muito mais equilibrado.
Tendo a ter mais vontades, ser tomado de absurdos,
de palavras fortes, de sistemáticas inspirações,
que recheiam com soberba erudição essas longas horas
de meio mundo de costas para o sol,
que dão nome e sabor as felicidades, poesias as meninas,
crônicas aos deuses, odes as cidades, sonetos aos montes,
músicas aos grandes homens.

É da noite a minha versão mais completa,
porque é nela que eu me encontro,
é nela que eu vejo verdade,
é nela que eu encontro liberdade e me desmancho,
é nela que eu me sinto a salvo e me refaço,
é pra ela que eu minto,
pra ela que eu me confesso,
é com ela que eu converso e me explico,
é por ela que quando passo, faço graça,
é dentro dela que eu esqueço qualquer ameaça,
as do futuro, dos dias, dos homens maus,
as das minhas meninas e as da morte de quem eu amo,
as ameaças do tempo, que me tem sido esse inimigo próximo,
um vizinho chato, pouco cordial
e que só faz passar, e passar e passar...

É pela noite, sim,
pelas noites,
enquanto fujo dos dias,
me escondendo de outras vidas,
navegando em solidão,
absorvendo belezas,
desconstruindo paisagens e obras inteiras...
é pelas noites,
só pelas noites,
por elas,
pra elas,
sereníssimas noites.

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